LIVRE PENSAMENTO


25/06/2021

Leonardo Boff

O princípio compaixão e a Covid-19

 

Publicado originalmente em Franciscanos

 

Foto ilustrativa: BBC

 

"Não é sem razão que a Covid-19 atingiu apenas os seres humanos,

como aviso e lição…"

 

 

Através da Covid-19, a Mãe Terra está movendo um contra-ataque à humanidade como reação ao avassalador ataque que vem sofrendo já há séculos. Ela simplesmente está se defendendo. A Covid-19 é igualmente um sinal e uma advertência que nos envia: não podemos fazer-lhe uma guerra como temos feito até agora, pois está destruindo as bases biológicas que a sustenta e sustenta também todas as demais formas de vida, especialmente, a humana. Temos que mudar, caso contrário nos poderá enviar vírus ainda mais letais, quem sabe, até um indefensável contra o qual nada poderíamos. Então estaríamos como espécie seriamente ameaçados. Não é sem razão que a Covid-19 atingiu apenas os seres humanos, como aviso e lição. Já levou milhões à morte, deixando uma via-sacra de sofrimentos a outros milhões e uma ameaça letal que pode atingir a todos os demais.

 

Os números frios escondem um mar de padecimentos por vidas perdidas, por amores destroçados e por projetos destruídos. Não há lenços suficientes para enxugar as lágrimas dos familiares queridos ou dos amigos mortos, dos quais não puderam dizer um último adeus, nem sequer celebrar-lhes o luto e acompanhá-los à sepultura.

 

Como se não bastasse o sofrimento produzido para grande parte da humanidade pelo sistema capitalista e neoliberal imperante, ferozmente competitivo e nada cooperativo. Ele permitiu que 1% dos mais ricos possuísse pessoalmente 45% de toda a riqueza global enquanto os 50% mais pobres ficassem com menos de 1%, segundo relatório recente do Crédit Suisse. Ouçamos aquele que mais entende de capitalismo no século XXI, o francês Thomas Piketty referindo-se ao caso brasileiro. Aqui, afirma, verifica-se a maior concentração de renda do mundo; os milionários brasileiros, entre o 1% dos mais ricos, ficam à frente do milionários do petróleo do Oriente Médio. Não admira os milhões de marginalizados e excluídos que esta nefasta desigualdade produz.

 

Novamente os números frios não podem esconder a fome, a miséria, a alta mortandade de crianças e devastação da natureza, especialmente na Amazônia e em outros biomas, implicada nesse processo de pilhagem de riquezas naturais.

 

Mas nesse momento, pela intrusão do coronavírus, a humanidade está crucificada e mal sabemos como baixá-la da cruz. É então que devemos ativar em todos nós uma das mais sagradas virtudes do ser humano: a compaixão. Ela é atestada em todos os povos e culturas: a capacidade de colocar-se no lugar do outro, compartilhar de sua dor e assim aliviá-la.

 

O maior teólogo cristão, Tomás de Aquino, assinala na sua Suma Teológica que a compaixão é a mais elevada de todas as virtudes, pois não somente abre a pessoa para a outra pessoa senão que a abre para a mais fraca e necessitada de ajuda. Neste sentido, concluía, é uma característica essencial de Deus.

 

Referimo-nos ao princípio compaixão e não simplesmente à compaixão. O princípio, em sentido mais profundo (filosófico) significa uma disposição originária e essencial, geradora de uma atitude permanente que se traduz em atos mas nunca se esgota neles. Sempre está aberta a novos atos. Em outras palavras, o princípio tem a ver com algo pertencente à natureza humana. Porque é assim podia dizer o economista e filósofo inglês Adam Smith (1723-1790) em seu livro sobre a Teoria dos Sentimentos Éticos: até a pessoa mais brutal e anticomunitária não está imune à força da compaixão.

 

A reflexão moderna nos ajudou a resgatar o princípio compaixão. Foi ficando cada vez mais claro para o pensamento crítico que o ser humano não se estrutura somente sobre a razão intelectual-analítica, necessária para darmos conta da complexidade de nosso mundo. Vigora em nós, algo mais profundo e ancestral, surgido há mais de 200 milhões de anos quando irromperam na evolução os mamíferos: a razão sensível e cordial. Ela significa a capacidade de sentir, de afetar e ser afetado, de ter empatia, sensibilidade e amor.

 

Somos seres racionais mas essencialmente sensíveis. Na verdade, construímos o mundo a partir de laços afetivos. Tais laços fazem com que as pessoas e as situações sejam preciosas e portadoras de valor. Não apenas habitamos o mundo pelo trabalho senão pela empatia, o cuidado e a amorosidade. Este é o lugar da compaixão.

 

Quem trabalhou melhor que nós ocidentais foi o budismo. A compaixão (Karuná) se articula em dois movimentos distintos e complementares: o desapego total e o cuidado essencial. Desapego significa deixar o outro ser, não enquadrá-lo, respeitar sua vida e destino. Cuidado por ele, implica nunca deixá-lo só em seu sofrimento, envolver-se afetivamente com ele para que possa viver melhor carregando mais levemente sua dor.

 

O terrível do sofrimento não é tanto o sofrimento em si, mas a solidão no sofrimento. A compaixão consiste em não deixar o outro só. É estar junto com ele, sentir seus padecimentos e angústias, dizer-lhe palavras de consolo e dar-lhe um abraço carregado de afeto.

 

Hoje os que sofrem, choram e se desalentam com o destino trágico da vida, precisam desta compaixão e desta profunda sensibilidade humanitária que nasce da razão sensível e cordial. As palavras ditas que parecem corriqueiras ganham outro sonido, reboam dentro do coração e trazem serenidade e suscitam um pequeno raio de esperança de que tudo vai passar. A partida foi trágica mas a chega em Deus é bem-aventurada.

 

A tradição judaico-cristã testemunha a grandeza da compaixão. Em hebraico é “rahamim” que significa “ter entranhas”, sentir o outro com profundo sentimento. Mais que sentir é identificar-se com o outro. O Deus de Jesus e Jesus mesmo mostram-se especialmente misericordiosos como se revela nas parábolas do bom samaritano (Lc 10,30-37) e do filho pródigo (Lc 15,11-32). Curiosamente, nesta parábola, a virada se dá não no filho pródigo que volta mas no pai que se volta para o filho pródigo.

 

Mais no que nunca antes, face a devastação feita pela Covid-19 em toda a população, sem exceção, faz-se urgente viver a compaixão com os sofredores como o nosso lado mais humano, sensível e solidário.

 

Leonardo Boff escreveu com Werner Müller o livro “Princípio compaixão&cuidado”, Vozes 2009; “Covid-19 – A Mãe Terra contra-ataca a humanidade”, Vozes 2020.

 

Disponível em https://franciscanos.org.br/vidacrista/o-principio-compaixao-e-a-covid-19/#gsc.tab=0 Acesso em 25 Jun. 2021

 


13/06/2021

Entrevista

Por onde anda e o que pensa o escritor jacuipense

Gladston Silva?

 

 

Link para o livro

 

 

Do ponto de vista estratégico e geopolítico, a comunidade jacuipense deve estar atenta também às possibilidades de trocas comerciais com Conceição do Coité, pois juntas estas cidades somam cerca de 100 mil habitantes e movimentam em torno de 1 bilhão de reais por ano.”

 

Eu prefiro um ministro ateu ético, justo e democrático do que ter na Suprema Corte um evangélico sem escrúpulos…”

 

...parte da classe empresarial e a velha classe média se viu ameaçada, ou mais precisamente não contemplada pelos governos petistas.”

 

Um dos pioneiros do mercado editorial, em Riachão do Jacuípe, o escritor Gladston Silva, filho do conhecido Pastor Severo, passou pela redação do jornal Gazeta da Bahia e lançou também uma revista impressa (Mercado) que desempenhou papel relevante na região, até meados dos anos 2000, tornando-se com isso bastante conhecido e reconhecido, na região.

 

Gladston Silva representa uma voz lúcida, no meio religioso e especialmente evangélico, num momento em que boa parte desse setor da sociedade tende a se aliar ao discurso e às práticas da extrema direita, no Brasil e no mundo.

 

Fora de Riachão do Jacuípe há alguns anos, o escritor atendeu ao nosso convite para uma entrevista online em que expõe as razões para a mudança de cidade, fala de seus estudos e publicações e, principalmente, emite opiniões consistentes e até surpreendentes quanto às questões político-econômicas e sociais, da atualidade, em nossa região, no Brasil e no mundo.

 

José Avelange Oliveira

 

Acordados - Por onde anda e o que tem feito Gladston Silva?

 

Gladston Silva - Em primeiro lugar lhe parabenizo, amigo Avelange, pela criação do Acordados e saúdo seu público. Quanto a mim, estão completando 5 anos que fui convocado para atuar no Instituto Federal Baiano Campus Valença, como servidor efetivo. Além do novo ambiente profissional, houve a "indesejada" mudança de cidade, de igreja e de tudo.

 

Uma das principais diferenças entre viver em Riachão e Valença é que na minha cidade de origem eu sabia o que estava acontecendo e muito do que ainda estava pra acontecer. Me acostumei a passar para o público que me privilegiava notícias da economia à política em primeira mão, em diversas mídias.

 

Aqui em Valença, quando cheguei não sabia o que estava acontecendo e muito menos o que estava pra acontecer (rsrsrsrs). Mas aqui com a família me foram abertas novas portas, fui recebido por uma comunidade cristã maravilhosa, concluí a graduação de Geografia e agora, dia 10 de junho, fui admitido em um programa de Mestrado da UFBA.

 

Acordados Você acredita que é possível viver a religiosidade sem cair na tendência atual aos retrocessos democráticos praticados em nome da fé?

 

Gladston Silva – Isso é plenamente possível e, particularmente no Brasil, absolutamente necessário. Eu olho para a Bíblia, tanto no Antigo e quanto principalmente no Novo Testamento, que é onde Jesus atualiza, interpreta e aplica não apenas a lei de Deus, mas sobretudo seu amor e graça, depois olho para muitas práticas e discursos de lideranças evangélicas de expressão nacional, e a conta não fecha.

 

Há muitas vezes um nítido choque de conceito e de prática entre o que Jesus viveu e ensinou e o que muitos líderes pregam e fazem. É preciso que os evangélicos atendam a recomendação do Apóstolo Paulo e olhem para Jesus, observem atentamente como ele tratava as pessoas.

 

Acordados – Você concorda que as multidões de fiéis das igrejas cristãs carecem imensamente de formação para o pensamento crítico e ético? Nesse caso, qual é a sua sugestão para a formação integral consistente dessas pessoas?

 

Gladston Silva – Os cristãos têm o líder mais sábio que já existiu e pleno acesso ao ensino que é o fundamento de uma filosofia total de vida que é o Cristianismo. Como batista, eu aprendi que a Bíblia é a nossa única regra de fé e prática, o que não quer dizer que eu não possa dialogar com outros sistemas de fé e filosóficos. Mas o problema é justamente que boa parte dos evangélicos deixou de seguir a verdade dos evangelhos para se conduzir pelas mentiras das fake-news, alguns de nós deixaram-se afastar da mensagem de amor e inclusão de Jesus para se aproximar das mensagens de ódio e exclusão. Eu entendo, às vezes nós podemos errar o alvo, mas é hora de repensar as coisas.

 

Acordados – Em sua opinião, a que se deve a presença considerável de evangélicos, católicos e pessoas religiosas, em geral, na base de apoio do presidente Jair Bolsonaro, mesmo diante das reiteradas quebras de decoro que ele comete abertamente, além de estimular aglomerações sem máscaras, por exemplo?

 

Gladston Silva – Eu não vejo nenhum problema em pessoas religiosas, sejam evangélicas, católicas, espíritas ou de outros credos, exercerem o seu direito à escolha política. Mas me preocupo demais com a impotência destes religiosos em influenciarem positivamente o governo. Mais grave, ao ver algumas lideranças evangélicas fazerem apologia da ditadura militar, fico com a impressão de que setores evangélicos próximos ao atual governo estão conseguindo a façanha de piorá-lo, pois o núcleo político que governa o país vê nesta base religiosa um dos pontos de apoio para fazer o que faz, como negar desde o início a gravidade da pandemia de Covid-19 e destruir famílias de todas as religiões, inclusive famílias evangélicas.

 

Acordados – Na condição de evangélico, como você analisa a possível indicação de um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF?

 

Gladston Silva – Eu prefiro um ministro ateu ético, justo e democrático do que ter na Suprema Corte um evangélico sem escrúpulos, parcial e subserviente ao totalitarismo e à violência.

 

Mesmo pessoas que não acreditam em Deus podem ser instrumentos dos céus para o cumprimento da vontade de Deus e o bem das pessoas. Diz a Escrita Sagrada, no capítulo 45 do livro do Profeta Isaías, que Deus escolheu Ciro antes de ter sido admitido no coração dele. O ateu, como foi Ciro, é uma pessoa que ainda não admitiu Deus em seu coração.

 

Acordados Os evangélicos de tendência mais progressista sofrem algum tipo de discriminação ou boicote, em termos de participação e decisão nas atividades congregacionais e se organizam de algum modo para fazer frente ao negacionismo de base religiosa que cresce, no país e no mundo?

 

Gladston Silva - Existem diferentes formas de organização nas inúmeras congregações evangélicas brasileiras. Os batistas tradicionais são mais democráticos, os presbiterianos lembram o regime parlamentarista, só que um pouco mais rígido, já os pentecostais e sobretudo os neopentescostais têm uma organização dos processos de decisão mais centralizados. No ambiente em que vivo, uma comunidade batista tradicional, há a cultura do debate de ideias. E me sinto à vontade pra me expressar, desde que esteja biblicamente fundamentado.

 

 

Acordados – Como você se define do ponto de vista político-econômico?

 

Gladston Meu caro Avelange, dirigi por 10 anos aí no Sisal e Bacia do Jacuípe, a partir de Riachão, a revista Mercado, uma publicação voltada à promoção do desenvolvimento econômico, e durante este trabalho convivi com a comunidade empresarial, não só de Riachão, mas também da região, e sei da importância e do papel da iniciativa privada em um país como o nosso, que é considerado majoritariamente como capitalista. Mas também fui fundador e primeiro presidente do Conselho Municipal do Idoso em nossa cidade, onde, somando o segundo mandato, trabalhei forte 4 anos com os companheiros conselheiros e parceiros para o bem do público que tínhamos o dever de representar.

 

Valorizo a capacidade de geração de riquezas, mas a solidariedade, numa sociedade tão desigual como a brasileira, deve estar presente desde a formulação das nossas políticas públicas e em todas as esferas da vida econômica e social do país. Defendo que o Estado e o Mercado devem servir a sociedade.

 

 

Acordados – Como você avalia as perspectivas de desenvolvimento para uma cidade como Riachão do Jacuípe, diante da conjuntura nacional e global a que assistimos atualmente?

 

 

Gladston Silva – Fiquei muito feliz com a divulgação pelo IBGE em 2020, com base nos números de 2018, que Riachão do Jacuípe foi a campeã de crescimento econômico em todo o Sisal e Bacia do Jacuípe, com uma taxa de elevação da atividade econômica de 15,75%. Coité por exemplo enfrentou uma recessão no mesmo período.

 

Na verdade, como defendi no meu Trabalho de Conclusão de Curso da graduação de Geografia, Riachão do Jacuípe avançou bastante entre os anos de 2004 e 2017. Em 2004 enquanto Riachão gerava R$ 1, com apenas o dobro da população Coité produzia R$ 3. Ou seja, a renda média do coiteense há 17 anos era 50% superior à de quem vivia em Riachão. De lá pra cá essa diferença foi caindo, de forma que hoje, respeitando-se algumas variáveis internas da distribuição de riquezas, a renda média de jacuipenses e coiteenses está mais nivelada, e isso aconteceu mais devido ao sucesso da sociedade de Riachão do que ao fracasso de Coité.

 

A cidade vizinha não deixou de se desenvolver, mas Riachão acertou mais. E aqui eu volto à sua pergunta: os caminhos para o desenvolvimento de Riachão, além da necessária reorganização diante da pandemia, passa por continuar acertando. E no que a cidade acertou? Riachão acertou na mobilização de entidades como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, da CDL e de movimentos sociais como a Pastoral da Juventude, acertou na realização de investimentos em urbanização, na aposta da industrialização do município. A cidade precisa avançar na compreensão da sua liderança como cidade polo para a oferta de produtos e serviços de qualidade para as cidades de sua área de influência.

 

Do ponto de vista estratégico e geopolítico, a comunidade jacuipense deve estar atenta também às possibilidades de trocas comerciais com Conceição do Coité, pois juntas estas cidades somam cerca de 100 mil habitantes e movimentam em torno de 1 bilhão de reais por ano. Riachão durante muitos anos se viu como um mercado pra Coité, mas empreendedores já têm provado que Coité também é um mercado pra Riachão. Eu por exemplo entrei no mercado publicitário de lá com a revista Mercado. Primeiro só levava dinheiro de Riachão pra pagar a impressão da revista lá. Depois que consegui clientes de Coité, comecei a fazer com que recursos de Coité também fossem transferidos pra Riachão.

 

Este ganho de escala foi um dos pontos fundamentais pra que a revista Mercado chegasse aos seus 10 anos. Ajudei Riachão a ser líder regional na produção e circulação de revistas e destaque na promoção de direitos da pessoa idosa com o Conselho Municipal do Idoso. E eu sei que em Riachão do Jacuípe há muitos líderes empresariais e sociais com grande visão empreendedora. E são esses homens e mulheres que ajudarão Riachão a alcançar novas e importantes conquistas no contexto dos territórios Sisal e Bacia do Jacuípe. No livro História Econômica de Riachão do Jacuípe no Século XXI (Amazon.com) feito com base no meu TCC da graduação de Geografia, é trabalhado tudo isso.

 

Acordados – A que se deve a derrocada da direita brasileira, em sua opinião, a ponto de a extrema direita vir a ocupar seu lugar no cenário político, ultimamente?

 

Gladston Na minha opinião o avanço da extrema direita no Brasil deve-se a um conjunto de fatores e fenômenos sociais. Num primeiro momento, a ascensão da extrema direita começa como um esboço de resposta proporcional ao que a esquerda fez no Brasil durante os governos do PT. Houve muitas ações positivas, na verdade, em muitos aspectos revolucionárias, para grande camada da população que passou a a ser incluída nos planos do país de democratização e interiorização do desenvolvimento econômico e da melhoria das condições de vida, como a política de aumento do salário mínimo acima da inflação. Então parte da classe empresarial e a velha classe média se viu ameaçada, ou mais precisamente não contemplada pelos governos petistas.

 

Houve também uma reação da sociedade em relação às fortes denúncias de corrupção contra o governo, as decisões como a da realização da Copa do Mundo, o apoio a Hugo Chaves, na Venezuela, e a Cuba, decisões avaliadas como estrategicamente erradas pela população, e tudo isso turbinado pela oposição, pela grande mídia, pela Lava Jato e por dois fenômenos importantes, o crescimento dos evangélicos e sua aproximação com a extrema direita, com interesses na defesa de uma pauta conservadora, nos usos e costumes, e o advento das redes sociais como um espaço alternativo, válido e eficiente para a construção de novas narrativas políticas e ideológicas, mesmo que as mesmas sejam dissociadas da realidade ou até propositalmente enganosas (fake-news).

 

 

Acordados – Por que o Capitalismo parece tão caro aos líderes religiosos, que demonstram ignorar graves consequências desse modelo de desenvolvimento econômico para o planeta e a humanidade? Você acredita que isso se deve a certas experiências também traumáticas com o comunismo, no leste europeu, por exemplo? O que restaria de alternativa à humanidade, no sentido de garantir equidade e paz para todos?

 

Gladston Silva – No final da Segunda Guerra Mundial, o primeiro ministro britânico, Winston Churchill, fez a que talvez seja a mais célebre definição das diferenças conceituais entre o capitalismo e o comunismo, quando na Câmara dos Comuns em Londres disse que a fraqueza inerente ao capitalismo é o compartilhamento desigual de bênçãos, enquanto a virtude inerente ao socialismo é o compartilhamento igual de misérias. Muitos concordam com o genial premiê britânico, e eu também diria que ele está basicamente certo.

 

O capitalismo tem mais capacidade de produzir riquezas, enquanto o comunismo se destaca pela distribuição dos recursos. Acontece que se você mais distribui do que produz, uma hora a conta não fecha. Mas também é fato que o comunismo pelo menos temporariamente distribui bênçãos, e que o capitalismo, se não for controlado, também é capaz de permanentemente distribuir misérias. Vemos isso quando em momentos de crise, como a do Coronavírus, a fome avança sobre a população de países capitalistas a exemplo do que acontece no Brasil e em desastres ambientais como a do estouro da Barragem de Brumadinho que matou 270 pessoas em 2019.

 

A preferência de cristãos católicos e evangélicos pelo capitalismo deve-se em parte à liberdade religiosa que geralmente anda junto com a livre iniciativa e à liberdade de expressão, ao passo que em muitas vezes o comunismo foi instalado com a restrição da liberdade econômica, da liberdade de expressão e até da liberdade religiosa.

 

Mas se no capitalismo a igreja pode existir, se expressar e ter liberdade de ação, esta existência e liberdade devem ser usadas a favor dos menos favorecidos e não para perpetuar o poder dos opressores. Os apóstolos receberam de Jesus a recomendação de não esquecer dos pobres. Mas às vezes a Igreja prefere se acomodar ao lado do poder econômico e do poder político. Acho que esta é uma das principais ameaças aos cristãos brasileiros, notadamente os evangélicos e sua bancada no Congresso Nacional, a de aliar-se aos poderosos contra os interesses do povo.

 

Acordados – Pesquisa XP/Ipespe recente demostra que a popularidade de Bolsonaro entre os evangélicos despencou, no último mês, com 38% das pessoas desse campo avaliando o presidente como ruim ou péssimo. A que se deve essa mudança surpreendente de percepção desses fiéis?

 

Gladston A queda do apoio ao presidente no meio evangélico acontece devido à reflexão sobre o discurso da perturbação institucional, da negação da pandemia, da repressão e violência policial, do armamento da população e de denúncias de corrupção que começam a chegar no governo. Essas ideias bolsonaristas não se sustentam diante do bom senso e muito menos perto dos valores defendidos e aplicados por Jesus, no trato com as pessoas.

 


10/06/2021

Marcos Coimbra

 

Lula ainda não ganhou, mas Bolsonaro já perdeu

a eleição de 2022

 

Publicado originalmente em Carta Capital

 

 

Arte com Google Imagens

 

"As pesquisas de opinião mais recentes expuseram a fragilidade do presidente, um pequeno líder patético", escreve Marcos Coimbra...

 

O pior cenário para a democracia no Brasil está afastado. Nada seria mais grave que o bolsonarismo se tornar um movimento popular, vinculando-se organicamente aos desejos e aspirações da maioria. Enraizado, como está, nos interesses das elites (que parecem satisfeitas com o que é e o que faz), um casamento duradouro entre os muito pobres e os muito ricos chegou a ser uma hipótese assustadora. Teve, no entanto, vida breve e, hoje, tudo indica que não existe mais.

 

A volta de pesquisas de opinião capazes de captar os sentimentos da maioria acabou com muitos equívocos. Em vez de forte, ficou clara a fragilidade do ex-capitão, que não passa de um pequeno líder patético. Seu governo é amplamente rejeitado. Não deu certo a tentativa de banir as esquerdas e elas se mantêm com tamanho intocado, apesar dos ataques sofridos. Ninguém sequer se lembra da lorota da “guinada ao centro”, que correu solta depois das eleições municipais.

 

Mais importantes para o futuro, as novas pesquisas mostram quão grande é a figura de Lula, o que quer dizer que, para a maioria da sociedade, continua a haver um caminho, na democracia, para expressar insatisfações e revolta. Como no passado, ao longo da redemocratização, Lula e o PT continuam a representar a esperança dos mais pobres no processo eleitoral.

 

Nas pesquisas Datafolha e Vox Populi, Lula tem o dobro das intenções de voto de Bolsonaro, ou até mais, se pensarmos em segundo turno. Em qualquer dimensão comparativa, o ex-presidente lidera com folga. Nos cenários de primeiro turno, a vantagem de Lula, na pesquisa Vox, entre aqueles de baixa renda e escolaridade, é grande, mais que o dobro de Bolsonaro: na escolaridade, 49% a 21%, na renda, 52% a 20%. Algo semelhante ocorre entre mulheres (Lula alcança 43% e Bolsonaro 19%). Também parecido com o que acontece entre jovens (o petista lidera com 46%, ante 21% do capitão) e entre aqueles que se autoclassificam como “pretos” e “pardos” (49% a 21%).

 

Como se vê, se dependesse somente do povo e se a eleição fosse hoje, Lula venceria com vantagem dilatada, no primeiro turno. Sua dianteira é ampla nos segmentos majoritários, seja em termos demográficos ou socioeconômicos. Mas não apenas neles, pois Lula também lidera nas classes de renda, escolaridade e idade mais elevadas, assim como entre homens e entre aqueles que se definem como “brancos”. E, para decepção do ex-capitão e seus acólitos em algumas igrejas, onde esperavam vantagem relevante, as pesquisas Vox e Datafolha apontam para um empate no público evangélico.

 

A perspectiva que tínhamos depois da eleição de 2018 não se confirmou. Bolsonaro começou a cair logo no início do governo e permaneceu em queda até o fim de 2019. Do começo da pandemia em diante, ficamos sem conseguir saber o que pensavam os segmentos majoritários e o terreno ficou livre para especulações de todo tipo. Muita gente chegou a achar que a popularidade de Bolsonaro havia sido turbinada pelo auxílio emergencial, revertendo a queda do ano anterior.

 

As pesquisas atuais revelam, no entanto, que, se funcionou por algum tempo, o imenso dispêndio no auxílio foi inútil para Bolsonaro. O tímido crescimento da aprovação, sugerido por pesquisas telefônicas feitas em 2020, se desfez. Gastou 400 bilhões de reais para obter o apoio do povo e é hoje majoritariamente rejeitado por ele.

 

Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/lula-ainda-nao-ganhou-mas-bolsonaro-ja-perdeu-a-eleicao-de-2022/ Acesso em 10 Jun. 2021

 


09/06/2021

 

Conversas Brasil afora para salvar a democracia

 Foto: BBC Brasil

 

Cada um e cada uma que exerce algum tipo de liderança local não alienada nem aliada à onda fascistoide vigente tem o dever ético de mobilizar outras pessoas, em vista do restabelecimento da democracia plena, no Brasil, e isso só vai ser possível por meio da eleição de um projeto de governo capaz de corrigir os grandes retrocessos que o país enfrenta. A questão é como fazer essa mobilização, em plena pandemia, e consequentemente garantir a eleição do projeto mais afinado com os interesses do povo.

No sertão há uma ciência de que “quem quer pegar passarinho não grita xô!” É sempre preferível que os pássaros voem livres, mas há quem aprenda a tê-los sempre por perto, ajudando a natureza a atender as necessidades dessas aves graciosas, com água boa, sementes e plantas à beira de casa. É precisamente isto o melhor que o setor progressista pode fazer, se quiser conquistar gente para a grande e dificultosa tarefa da superação do obscurantismo em que se meteu o país, nos últimos anos.

Trata-se de oferecer aos cidadãos e cidadãs vacilantes, na defesa da democracia, a oportunidade de compreender quanto todos ganham, ao eleger presidente e parlamentares realmente comprometidos com a Constituição. Isso é bem mais assertivo do que tratar certos apoiadores desavisados da tendência totalitarista como inimigos irreversíveis a se combater.

Em muitos casos, pode haver gente endurecida em suas convicções de extrema direita, com quem não se deve perder tempo realmente, mas não são todos assim os que tomaram a barca furada da negação da política, que resultou nisso tudo que aí está.

 

Sonhar em rede 

 

A propósito, as pastorais e as comunidades eclesiais católicas, mesmo enfraquecidas em sua tradição de lutas e promoção da autonomia do povo, após a guinada à direita que se verifica entre o clero, ainda compõem uma grande rede de pessoas com muita disposição para sonhar uma sociedade mais justa.

O problema é que boa parte dessas pessoas carecem de formação para se emancipar e entender que as mudanças desejadas não virão pela via do puro assistencialismo e do desprezo pela política, mas não há tempo hábil para corrigir plenamente tal fragilidade de compreensão da vida em sociedade.

É necessário, mesmo assim, que aqueles com melhor percepção sociológica das realidades e com certo carisma junto à população local comecem a organizar conversas descontraídas e capazes de veicular informações pontuais e reveladoras junto a todos aqueles e aquelas que puder agregar, utilizando as ferramentas tecnológicas disponíveis.

Dada a exclusão digital, naturalmente muita gente do povo não poderá participar desse tipo de bate-papo online, entretanto, não são tão poucos assim aqueles que já conseguem participar de uma reunião virtual e que tendem a ser exatamente pessoas com algum grau de influência sobre sua comunidade, bairro, setor, etc.

Pode-se começar levantando uma lista de nomes de cidadãos e cidadãs que se sabe serem receptivos a um convite dessa natureza, com o cuidado de assegurar, já no convite, que todos os terão voz, durante a conversa, em caso contrário, as pessoas pensarão que se trata de mais uma entre as mil e tantas lives para as quais são chamadas todos os dias e em que normalmente apenas certos especialistas falam, quase sem parar.

É obvio que atividades online de cunho expositivo também têm sua importância e seu lugar, mas aqui não se trata disso. O importante é que os convidados se sintam como parte ativa do bate-papo, de uma forma que isso se pareça o máximo possível com uma roda de conversa presencial e ninguém se canse de estar ali, à frente da tela, por algum tempo, porque afinal todos terão certo papel a desempenhar.

 

A conjuntura é a pauta

 

No tocante à pauta, cada realidade possui suas especificidades, em matéria de demandas locais que não devem ser esquecidas, nesse momento, porém, tanto quanto possível, deve-se centrar esforços em apresentar dados reveladores da conjuntura nacional preocupante e obviamente seus reflexos no município ou região.

Desse modo, uma chamada para uma conversa pública sobre desemprego e falta de oportunidades na cidade, por exemplo, pode ensejar muito bem a leitura mais abrangente do problema que afeta todo o país, suas causas e relações com outros temas nacionais.

A partir daí e feitas as considerações ou interpretações, sob a ótica dos interesses do povo, por pessoa ou pessoas mais aptas a discorrer sobre o assunto naquele momento, deixa-se todo mundo falar, dentro de certos parâmetros de tempo previamente ajustados. Ao final, são encaminhadas estratégias de multiplicação daquelas informações e sugestões para o despertamento das pessoas em geral, diante de situações muito indesejáveis que o país atravessa, de modo que todos comecem a se comprometer com as transformações necessárias, aproveitando o período pré-eleitoral e as eleições em si, no próximo ano, se estiverem de fato garantidas, a depender exatamente de ampla mobilização contra certas perspectivas ruins que se anunciam.

O que não pode ocorrer agora como aparentemente vem ocorrendo bastante, é o campo progressista permanecer até certo ponto fechado em si mesmo, falando para dentro, ou atirando palavras ásperas a esmo, não sem razão, mas sem muito proveito.

Sindicalistas, professores e líderes religiosos não alienados, comerciantes conscientes, jovens influenciadores digitais que não sucumbiram ao individualismo ou ao mero desejo de fama e dinheiro precisam começar a promover essas reuniões virtuais para fomento da esperança e organização da luta, sem a qual a derrocada da democracia brasileira tende a se consolidar.

José Avelange Oliveira, professor da rede estadual da Bahia, autor do livro Ditados Interessantes dos Povos do Mundo Inteiro.